Quem sou eu

        
       
APRESENTAÇÃO
     


Olá. Sou Fernando Mello, músico, cantor e compositor, nasci na Amazônia ocidental, quase na fronteira com o Peru, numa cidade chamada Cruzeiro do Sul, último município do estado do Acre, ou primeiro de acordo com a ótica. Essa cidade é a casa de um rio, um dos maiores do Brasil, o Juruá, afluente imenso do maior de todos: o Amazonas. Nesse pedaço esquecido do Brasil em meados da década de 60 a luz acabava às oito da noite. Daí em diante, era lampião a gás, com direito a muitas mariposas em volta. A geladeira era a querosene, a água era de poço e o banho era de cuia. Os meus sonhos, muito distantes dali, resumiam-se a como poderia ser um chuveiro, uma pia, uma torneira. Telefone não havia, televisão nem pensar. Assim eu crescia, pequeno e cantor, e ali fiquei até os 12 anos, entre as capoeiras da Amazônia, os banhos de rio e as praças de Cruzeiro, meus primeiros palcos de onde, acompanhado por minha mãe e segundo ela mesma conta, cantava para os engraxates a velha canção de Altemar Dutra “...sentimental eu sou, eu sou demais...” O rádio era o principal meio de comunicação do município. Era a minha ligação com a música. A mais direta e mais marcante. Através do rádio conheci Luiz Gonzaga - uma das minhas influências - além de todos os seus discípulos... conheci o samba, “Novos Baianos”, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, conheci a “Jovem Guarda”, Beatles, o vizinho carimbó, a "Tropicália", e a música latina, a salsa, o mambo, o merengue, através das diversas rádios peruanas, bolivianas, cubanas e tantas outras tão comuns naquela região. Essa mistura, essa verdadeira salada musical explodiu como uma bomba no meu coração e desde muito cedo soube entender a universalidade da música e o quanto essa arte mimética pulveriza fronteiras. Depois disso veio Rio Branco a capital do Acre, depois Brasília a capital federal, e por último Rio de Janeiro, Teresópolis, uma das cidades mais belas do Brasil, terra do “Dedo de Deus” e da “Pedra do Sino”. Foi lá que eu pude conhecer o esplendor do meu trabalho. Foi lá que me firmei como músico, cantor e compositor, e foi lá também que construí as bases sólidas de meu trabalho, um som miscigenado que mistura diversas tendências como o samba, o reggae, a música regional de caráter mais nordestino, o xote, o xaxado e o baião, o suingue da música negra, declaradamente uma de minhas preferidas, e elementos da música americana como o rock, o soul, o funk e o rythm’n blues. O resultado de tantos elementos é uma música que se propõe moderna, vibrante e com muito “swing”, apoiada por letras e textos capazes de agradar aos mais variados e exigentes gostos musicais, tendo portanto, um público alvo caracterizado por pessoas de faixas etárias diversas. Entre algumas outras realizações destaco a participação em programas de TV como o “Som Brasil da Rede Globo” e o programa “Sinal Aberto” da TVE. Além disso, gravei o Programa Volume – TVT – Teresópolis; ajudei a conceber e apresentei o programa IAI programa cultural da Diário TV, Canal 4 Teresópolis;  participei do 3º e 4º aniversário da TV Cidade - Teresópolis, do “Papo de bar” na TV Mistura Fina – canal 17 Teresópolis, entre alguns outros. Abri shows de Elba Ramalho e Hanói-Hanói. Além da música, sou formado em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, atuando em vários segmentos de ensino, sempre propondo uma fórmula de parceria há muito utilizada pelo cancioneiro popular: a junção da Música com a Literatura.

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UM POUCO DA HISTÓRIA



A minha infância foi magia, Pura magia. Nasci numa cidade rodeada pela selva, ouvindo as histórias de "assombração" contadas por minha avó, e com a companhia preciosa do rádio. Nele ouvia de tudo. Os beatles estourando no mundo, Luiz Gonzaga era o ídolo máximo, o Acre foi colonizado pelo nordeste e possui muito de sua cultura - aliás a sua história é uma das mais bonitas do Brasil, os acreanos lutaram e muito para se tornarem brasileiros, e nessa minha última ida lá pude constatar o orgulho que eles tem do seu (nosso) estado – e os Novos Baianos eram a grande novidade das paradas de sucesso. Além disso, em função da proximidade com a América espanhola, ouvia todas aquelas estações de rádio peruanas, cubanas, bolivianas, entre muitas outras (minha avó adorava) e foi aí que conheci Mercedes Sosa, Violeta Parra a mãe do folk latino, o merengue e a salsa. Imaginem o que essa salada musical faria na minha cabeça.
As pesadas máquinas do exército (7o. BEC - Batalhão de Engenharia e Construção) abrindo as ruas da cidade eram a nossa diversão. Eu e meus irmãos ficávamos até tarde da noite ouvindo e vendo aqueles monstros amarelos desfigurando os barrancos. De dia a vida era dura... escola pela manhã, à tarde duas latas de querosene em cada extremidade de uma madeira às costas para pegar água em um poço distante. Não existia o que conhecíamos como "água encanada". O banho era de "cuia", e as necessidades fisiológicas fazíamos no "banheiro" fora de casa bem em cima de um grande buraco que se conhece como "fossa". Nós ficávamos sonhando como seria uma pia, um chuveiro. Era o máximo a imagem dessas coisas na nossa cabeça. Televisão então era um sonho muito, muito distante. Ouvíamos falar dela através de meu pai, que era carioca, portanto "civilizado", promotor público e era a autoridade máxima da cidade. Fazíamos mil perguntas a ele sobre uma caixa com figuras que se moviam, as imagens se formavam na nossa cabeça mas não entendíamos como era possível... o rádio sim, esse era o grande veículo. Lembro bem, meu pai e toda a família ouvindo a narração de toda a copa de 70 e o rádio rodeado por mil imagens de anjos e santos.
Sim, nossa família era católica, apesar de minha mãe sempre dar uma escapulida para a umbanda. A igreja ainda hoje é o cartão postal da cidade. Fui sacristão por um bom tempo, mas morria de vergonha da "coleta". Levei muitas broncas do padre que, incrédulo, recebia a sacola vazia onde seria depositado o dinheiro dos fiéis. Em contrapartida, a hora de tocar o sino era um êxtase. Ficava torcendo pra que eu fosse o escolhido. Que decepção quando ia pra "coleta". Minha timidez não permitia tamanha vergonha. Segui a minha vida de religioso com culpas, confissões, penitências e medo do inferno, até que fui "salvo" por uma negrinha faceira, uma vizinha que conhecíamos como "Mariquinha", filha de Seu Gumercindo... ela me levou pro mato e ali acabou a culpa, o medo e a minha intenção de ser padre.
No rádio também acompanhamos algumas novelas que mexiam com a nossa imaginação. "O Egípcio", de Ivani Ribeiro foi uma delas. Impossível esquecer o Radamés, que como disse Zinho um amigo de infância na minha última ida ao Acre: "ô homi bunitoo"... a gente não via, mas assim como na literatura, as imagens iam se formando na nossa cabeça a partir das narrativas. Ísis, o labirinto, Medéia, o Minotauro, como era mágico... a cidade parava depois do almoço. O mundo parava depois do almoço. Todos em silêncio absoluto em redor do rádio, e ai de quem falasse.
O rio que corta Cruzeiro do Sul é um dos maiores do Brasil. Se muito não me engano, o quinto em extensão. É o rio Juruá. Junto à Igreja havia (há até hoje) o cais. Esse era um lugar em que íamos todas as tardes admirar o rio e assistir ao espetáculo dos botos descendo nas correntezas. Nessas últimas quase me afoguei algumas vezes, as cheias são imensas, mas benevolentes, diferentes das cheias daqui. O rio enche avisando... e dificilmente faz mal a alguém. As praias imensas no período da seca aparecem como um convite ao banho e ao futebol. Certa vez fui salvo por um bando de “meninos de rua” que me tiraram dos braços ferozes da correnteza e depois comentavam contentes: “é o filho do doutor”. A praça que rodeia a Igreja, era o paraíso do “tacacá”, um preparado de origem indígena muito conhecido na região norte, feito com o caldo quente da mandioca "braba", o tucupi, uma goma também feita da mandioca (uma espécie de cola que fica por baixo da "cuia" onde o tacacá é servido), jambu, uma erva que adormece a boca por inteiro, e camarão seco. O tacacá é tão gostoso e tão cheiroso que a dezenas de metros da barraca o cheiro invade todos os sentidos e a boca enche de água.
Também fui escoteiro. O escotismo no Acre era uma preparação para o exército. Os chefes eram todos do exército. E meu pai, conservador e moralista, achava o máximo. Acampamentos de três dias no mato, comendo aquela comida que a gente chamava "gororoba", atravessando pântanos com lama no peito, com o corpo inteiro coberto por imensos mosquitos amazônicos, mochila pesada nas costas, enfrentando a floresta, cobras e outros bichos. Esses acampamentos foram muitos, e o resultado deles era sempre o mesmo: chegava em casa, comia uma montanha de macarrão (o da minha mãe que se eu já achava o melhor do mundo, imaginem naquela circunstância) e dormia (desmaiava) 48 horas.
O cinema em Cruzeiro do Sul era um primor. Cinema do seu Zinzim. Uma casa grande, de madeira, bem amazônica, e no início cada um levava a sua cadeira. A tela grande em preto e branco era a sensação da cidade. Lembro bem o primeiro filme que vi na vida. "Tarzan no Vale do Ouro". Meu pai adorava. Era fã da macaca Chita. Os filmes de Tarzan e também os de Teixeirinha paravam a cidade. A fila dobrava o quarteirão quando o cinema anunciava um dos dois.
Algum tempo depois, experimentamos o paraíso da água encanada. A "SANACRE" instalando os canos, as obras, e a água saindo da mangueira. É difícil descrever essa sensação... imaginem banhos de mangueira com potentes jatos de água numa região de muito calor.

Logo depois o telefone... vejam a civilização chegando. O aparelho estava lá, esquecido há tempos num canto da sala. Meu pai havia comprado, toda instalação estava feita mas não havia linhas telefônicas. E ele ficou lá, anos... Uma noite, estávamos todos à mesa, família grande, sete irmãos e mais minha avó e minha tia - todos moravam com a gente, meu pai foi um homem de coração muito nobre - e ouvimos uma campainha insistente... triiim, triiiim, triiim... foi um sobressalto, gritaria, atropelo e correria... todos gritaram quase que ao mesmo tempo: "o telefoneee"... o secretário de comunicações ligava para meu pai numa ligação oficial, decretando aberta a comunicação telefônica da cidade de Cruzeiro do Sul.

Divido com vocês um pouco da minha vida por ter a sensação de que vivi em outra dimensão do tempo e do espaço.

Isso e muito mais faz parte do primeiro capítulo – Cruzeiro do Sul. O segundo é nossa mudança para a capital, Rio Branco, onde cheguei com 11 anos. Foi a mudança mais marcante da minha vida, muito mais do que de Rio Branco para Brasília para onde eu fui a seguir. Foi o encontro com a TV, e com todos os atrativos da "civilização"... mas isso já é uma outra história.

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