quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Velha Infância

 A minha infância foi magia, Pura magia.  Nasci numa cidade rodeada pela selva, ouvindo as histórias de "assombração" contadas por minha avó, e com a companhia preciosa do rádio. Nele ouvia de tudo. Os beatles estourando no mundo, Luiz Gonzaga era o ídolo máximo - o Acre foi colonizado pelo nordeste e possui muito de sua cultura - e os Novos Baianos eram a grande novidade das paradas de sucesso. Além disso, em função da proximidade com a América espanhola, ouvia todas aquelas estações de rádio peruanas, cubanas, bolivianas, entre muitas outras (minha avó adorava) e foi aí que conheci Mercedes Sosa, Violeta Parra a mãe do folk latino, o merengue e a salsa. Imaginem o que essa salada musical faria na minha cabeça.

As pesadas máquinas do exército (7o. BEC - Batalhão de Engenharia e Construção) abrindo as ruas da cidade eram a nossa diversão. Eu e meus irmãos ficávamos até tarde da noite ouvindo e vendo aqueles monstros amarelos desfigurando os barrancos. De dia a vida era dura... escola pela manhã, à tarde duas latas de querosene em cada extremidade de uma madeira às costas para pegar água em um poço distante. Não existia o que conhecíamos como "água encanada". O banho era de "cuia", e as necessidades fisiológicas fazíamos no "banheiro" fora de casa bem em cima de um grande buraco que se conhece como "fossa". Nós ficávamos sonhando como seria uma pia, um chuveiro. Era o máximo a imagem dessas coisas na nossa cabeça. Televisão então era um sonho muito, muito distante. Ouvíamos falar dela através de meu pai, que era carioca, portanto "civilizado", promotor público e era a autoridade máxima da cidade. Fazíamos mil perguntas sobre uma caixa com figuras que se moviam, as imagens se formavam na nossa cabeça mas não entendíamos como era possível... o rádio sim, esse era o grande veículo. Lembro bem, meu pai e toda a família ouvindo a narração de toda a copa de 70 e o rádio rodeado por mil imagens de anjos e santos.

Sim, nossa família era católica, apesar de minha mãe sempre dar uma escapulida para a umbanda. A igreja ainda hoje é o cartão postal da cidade. Fui sacristão por um bom tempo, mas morria de vergonha da "coleta". Levei muitas broncas do padre que, incrédulo, recebia o saco vazio onde seria depositado o dinheiro dos fiéis. Em contrapartida, a hora de tocar o sino era um êxtase. Ficava torcendo pra que eu fosse o escolhido. Que decepção quando ia pra "coleta". Minha timidez não permitia tamanha vergonha. Segui a minha vida de religioso com culpas, confissões, penitências e medo do inferno, até que fui "salvo" por uma negrinha faceira, vizinha da gente que conhecíamos como "Mariquinha", filha de Seu Gumercindo... ela me levou pro mato e ali acabou a culpa, o medo e a minha intenção de ser padre.

No rádio também acompanhamos algumas novelas que mexiam com a nossa imaginação. "O Egípcio", de Ivani Ribeiro foi uma delas. Impossível esquecer o Radamés, que como disse um amigo de infância na minha última ida ao Acre: "ô homi bunitoo"... a gente não via, mas assim como na literatura, as imagens iam se formando na nossa cabeça a partir das narrativas. Ísis, o labirinto, Medéia, o Minotauro, como era mágico... a cidade parava depois do almoço. O mundo parava depois do almoço. Todos em silêncio absoluto em redor do rádio, e ai de quem falasse.

O rio que corta Cruzeiro do Sul é um dos maiores do Brasil. Se muito não me engano, o quinto em extensão. É o rio Juruá. Junto à Igreja havia (há até hoje) o cais. Esse era um lugar em que íamos todas as tardes admirar o rio e assistir ao espetáculo dos botos descendo nas correntezas. Nessas últimas quase me afoguei algumas vezes, as cheias são imensas, mas benevolentes, diferentes das cheias daqui. O rio enche avisando... e dificilmente faz mal a alguém. As praias imensas no periodo da seca aparecem como um convite ao banho e ao futebol.  Certa vez fui salvo por um bando de “meninos de rua” que me tiraram dos braços ferozes da correnteza e depois comentavam contentes: “é o filho do doutor”. A praça que rodeia a Igreja, é o paraíso do “tacacá”, um preparado de origem indígena muito conhecido na região norte, feito com o caldo quente da mandioca "braba" - o tucupi,  a goma que também é feita de mandioca (uma espécie de cola que fica por baixo da "cuia" onde o tacacá é servido), jambu, uma erva deliciosa que adormece a boca por inteiro, e camarão seco. O tacacá é tão gostoso e tão cheiroso que a dezenas de metros da barraca o cheiro invade todos os sentidos e a boca enche de água.

Também fui escoteiro. O escotismo no Acre era uma preparação para o exército. Os chefes eram todos do exército. E meu pai, conservador e moralista, achava o máximo. Acampamentos de três dias no mato, comendo aquela comida que a gente chamava "gororoba", atravessando pântanos com lama no peito, com o corpo inteiro coberto por imensos mosquitos amazônicos, mochila pesada nas costas, enfrentando a floresta, cobras e outros bichos. Esses acampamentos foram muitos, e o resultado deles era sempre o mesmo:  chegava em casa, comia uma montanha de macarrão e dormia (desmaiava) 48 horas. O detalhe é que eu tinha 10 anos.

O cinema em Cruzeiro do Sul era um primor.  Cinema do seu Zinzim. Uma casa grande, de madeira, bem amazônica, e cada um levava a sua cadeira. A tela grande em preto e branco era a sensação da cidade. Lembro bem o primeiro filme que vi na vida. "Tarzan no Vale do Ouro". Meu pai adorava. Era fã da macaca Chita. Os filmes de Tarzan e também os de Teixeirinha paravam a cidade. A fila dobrava o quarteirão quando o cinema anunciava um dos dois.

Algum tempo depois, experimentamos o paraíso da água encanada. A "SANACRE" instalando os canos, as obras, e a água saindo da mangueira. Nossa, é difícil descrever essa sensação... imaginem banhos de mangueira com potentes jatos de água numa região de muito calor.

Logo depois o telefone... vejam a civilização chegando.  O aparelho estava lá, esquecido há tempos num canto da sala. Meu pai havia comprado, toda instalação estava feita mas não havia linhas telefônicas. E ele ficou lá, anos... Uma noite, estávamos todos à mesa, família grande, sete irmãos e mais minha avó e minha tia - todos moravam com a gente, meu pai foi um homem de coração muito nobre - e ouvimos uma campainha insistente... triiim, triiiim, triiim... foi um sobressalto, gritaria, atropelo e correria... todos gritaram quase que ao mesmo tempo: "o telefoneee"... o secretário de comunicações ligava para meu pai numa ligação oficial, decretando aberta a comunicação telefônica da cidade de Cruzeiro do Sul.

Divido com vocês um pouco da minha vida por ter a sensação de que vivi em outra dimensão do tempo e do espaço.

Isso e muito mais faz parte do primeiro capítulo – Cruzeiro do Sul. O segundo é nossa mudança para a capital Rio Branco, onde cheguei com 11 anos. Foi a mudança mais marcante da minha vida, muito mais do que de Rio Branco para Brasília para onde eu fui a seguir. Foi o encontro com a TV e com todos os atrativos da "civilização"... mas isso já é uma outra história.

Toada de Boas Vindas (À Marcos André Martins)


Meu cumpadre, sê bem vindo
Ao teu lar, à tua casa
Depois de longa jornada
Longo tempo, agora findo.

Lindo, leve, novo, antigo,
O luar é nosso amigo
Ilumina a madrugada
Poema, canção, toada,
E meu coração renascido

Esse luar, essa estrada,
Que conhecemos tão bem,
São as marcas de quem chora
Por um amor que não vem
Mas também é luz, aurora,
Do sol da primeira hora
Do dia que é mais além

Do dia em que és bem vindo
A essa aldeia perdida
Entre o mar e a montanha
Entre um morro e uma avenida
Entre um rio e uma cascata,
Entre um sino e uma ferida.

Teu cumpadre, dessa aldeia
Te abraça pelo verso
E dá luz ao universo
Contemplando a lua meia
Que cantavas na toada
E hoje, bem aventurada,
Vira bela lua cheia.

E essa lua que clareia,
Clareou tua partida
Clareou tua jornada
Clareou a despedida
Clareia tua chegada
Ilumina a nossa lida
E pela volta de seu filho
Hoje derrama seu brilho
Sobre toda a minha vida.

Anjo Diabo

 Não sei que anjo doido, endiabrado
Te pôs aqui, bem dentro do meu peito
Depois sorriu e disse: - não tem jeito
Terás o coração estraçalhado

E de seu arco forte, retesado...
Partiu a flecha e me acertou, contudo,
Estava escrito em seu olhar miúdo
O desprazer que me era reservado

E então partiu zombando, o desgraçado,
E me deixou assim, olhando mudo...
Como um fantasma que devasta tudo
O amor que nasce e morre só... calado.

Mas volto a te encontrar, anjo diabo...
Palhaço de cruel melancolia
E hás de transformar em alegria
O que hoje é pranto, dor, tristeza e enfado!




Hotel Rio dos frades, 24/09/2006

domingo, 14 de outubro de 2012

A Casa




Essa casa maior, em primeiro plano, foi a casa onde eu e meus irmãos nascemos, em Cruzeiro do Sul, interior do Acre.
Dela, só sobraram essa foto e uma canção. Divido com vocês.

                                        /   /   /                              

Eu cresci naquela casa, que hoje só guardo a fachada
Minha vó sempre sentada na calçada em frente à casa
Minha primeira morada, onde eu conheci o medo
E o prazer da madrugada.

De manhã quando acordava, o horizonte era vermelho
De tarde o sol se escondia por trás do morro velho
Certo dia viajando, conheci muitas cidades e fachadas
Mas meu pensamento volta...
Volta sempre àquela casa.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Avenidas


Já tive o gosto do batom de um lábio sedutor
Embriaguei na aguardente os sonhos mortos de amor
Mas ao cruzar com o tal pecado então me descobri e vi o mundo enfim
Sorrir cantar, zombar de mim

Cruzei as avenidas feitas por asfalto e féo
Olhei minh'alma num espelho e resultou cruel
Mas quando chove e o dia fica limpo e claro como noite de luar
Vem um não sei o que
Me atormentar

Por que não estás aqui, amor por que não estás?
Será que essa saudade não me deixa nunca mais?
Por que não sai de mim? Me deixa, me deixa...
A solidão não é ruim, pior é essa angústia.

Já visitei o inferno, Dante, Cristo e Lampião
Estive olhando brancas nuvens mortas pelo chão
Mas nunca vi tanta ferida como um coração abandonado e só
Tristeza assim, não tem pior
Passei a noite inteira de fazer dó
Curar a bebedeira andar do chão ao pó
Eu sou apenas um menino só um andarilho, um sonhador
Que sonha sim, com o teu amor

Por que não estás aqui, amor por que não estás?
Será que essa saudade não me deixa nunca mais?
Por que não sai de mim? Me deixa, me deixa...
A solidão não é ruim, pior é essa angústia.

O Amor que eu Nunca Tive

O amor que eu nunca tive
Mora dentro do meu sonho
É um amor assim medonho
Que na minha alma vive

É o amor que te proponho
O amor que sobrevive
Além do medo e do ganho
Além do mar, inclusive

O amor que eu nunca tive
Vem do lume, vem do facho
Vem da brasa, onde estive

Vem do fogo e do riacho
Vem de Deus e de um despacho
O amor que eu nunca tive

Erótica

 

Se o meu desejo entrar por tuas pernas
E a minha boca tomar a tua boca
Há de invadir-me uma vontade louca
De mergulhar em sensações eternas

Enquanto exploro todas as cavernas
Ouvindo o sussurrar de uma voz rouca
A noite cai enquanto cai a roupa
Pra saciarmos vibrações internas

Entrar com meu desejo em teu desejo
Enquanto o lábio beija e balbucia
E esta mulher que tem a pele nua

Se veste assim como quem não queria
E deixa a vida um pouco mais vazia
Quando se vai, na imensidão da rua.

O Encanto


Um dia o encanto se cansou de ser sozinho
De ver o mundo pelo prisma de uma flor
E resolveu partir em busca de um caminho
E de um sonho muito desafiador

A sua mãe, uma florzinha amarelada
Sentiu saudade e uma pontinha de pavor
Mas percebeu que a vida nasce pela estrada...
E o encanto abraçou seu pai – o amor!

E foi embora, lá do reino de onde as fadas
Brincam de dia e de tarde vão dançar
Porque as fadas não se cansam da alegria
Porque as fadas já nasceram pra voar

E o encanto transformou-se numa moça
Que conhecia bem a arte de encantar
Também pudera, a mãe, a linda flor do campo
E o pai, o amor, com quem aprendera a amar

E essa moça que encantava até o escuro
Tinha os cabelos claros como a luz da lua
Essa fadinha é o encanto transmutado
Olhar pra ela é como ver a alma nua.
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